domingo, 7 de junho de 2009

DIRETO DO FRONT - José Padilha abre o jogo sobre a violência e a "polêmica"

Tropa de Elite não foi obra do acaso. José Padilha é o autor do também “porrada na cara” documentário Ônibus 174 – sobre a construção de um criminoso na sociedade brasileira – e o produtor do sensacional Estamira, filme sobre uma mulher esquizofrênica que vive em um aterro sanitário no Rio. Mas Tropa de Elite é um trabalho transcendental. De tão poderoso, mudou até mesmo a maneira que os traficantes recebem a polícia nas favelas cariocas. Nesta conversa franca com a Jungle, o diretor conta sobre o Urso de Ouro, sobre as causas da violência e sobre todas as críticas e elogios que escutou desde o final de 2007. Cansado de conclusões errôneas, ele expõe sinceramente que não se sente à vontade com as críticas de que o Tropa de Elite é fascista. A entrevista foi tensa, mas Padilha abriu o jogo.

O Cidade de Deus ainda é uma grande referência do cinema brasileiro aqui na Europa e a impressa tem comparado o filme ao Tropa de Elite. Você acha justa esta comparação?

Os filmes têm algumas coisas em comum e outras bem diferentes. Para começar, o tema. O Cidade de Deus é um filme que fala sobre guerra entre quadrilhas em uma favela. É um filme que fala sobre a formação do tráfico e é centrado quase que exclusivamente no tráfico. O Tropa de Elite entra com a interseção de quatro universos diferentes. Um deles é o universo dos traficantes, o outro é o universo da polícia convencional, depois tem o universo da Tropa de Elite, com a sua agressividade e desrespeito aos direitos humanos e, finalmente, o universo dos estudantes universitários que consomem drogas. O filme fala sobre como é que os quatro universos diferentes interagem entre si e de que forma essa interação gera violência. Então, o tema dos dois filmes é diferente. A forma de filmar também não é muito parecida, porque meu filme é totalmente com câmera na mão, vem
de uma formação de documentarista, diferente da formação do Fernando Meirelles. Agora, os dois filmes têm em comum o fato de serem filmes que, embora falem de problemas sociais, não se distanciam do espectador. Os dois filmes têm personagens eticamente errados, equivocados, mas interpretados por atores com grande carisma, e que levam o público a se identificar com esses personagens: no Tropa, o capitão Nascimento, no Cidade de Deus, o Zé Pequeno. E isso suscitou críticas em comum aqui no Brasil aos dois filmes. Sobre o Tropa de Elite foi dito que uma parcela da população se espelha no capitão Nascimento e sobre o Cidade de Deus, as pessoas disseram que estimulava o tráfico, estimulava as crianças a imitar o Zé Pequeno.

O Tropa de Elite é todo narrado em primeira pessoa, do ponto de vista do comandante do BOPE e é recheado de música, de ação envolvente. Surpreende que muita gente tenha considerado o filme simpático ao BOPE?

Na verdade, a esmagadora minoria das pessoas disse isso. É necessário não entender o filme para falar isso. O filme mostra de forma muito clara o BOPE torturando de maneira vil e matando dentro das favelas. O filme não mostra isso escondido, mostra na cara do público. O BOPE entrou na Justiça contra o filme, todos os oficiais do BOPE entraram na Justiça com uma ação comum, para impedir a exibição do filme, para nos obrigar a retirar do filme as cenas de ação, as cenas de tortura e de morte na favela. Finalmente, a própria polícia puniu os políciais que ajudaram na realização do filme. Então, a polícia e o BOPE não gostaram do filme. Entenderam o filme como sendo uma crítica. O júri do Festival de Berlim também entendeu assim.

E qual foi seu objetivo principal ao fazer o filme? Era uma sátira das ações do BOPE?

O filme não é uma sátira, é uma crítica. O filme é uma crítica ao Estado, é uma seqüência do Ônibus 174. No Ônibus 174 contamos a história de um criminoso muito violento do ponto de vista do criminoso. E, através dessa história, nós mostramos como é que o Estado pegou um menino de rua e o torturou, o colocou em instituições que não eram escolas (eram campos de concentração), o colocou em cadeias superlotadas... E, ao lidar assim com um pequeno criminoso, o documentário mostra como o Estado o transformou em um grande criminoso. Então a pergunta do Ônibus 174 é: “como é que o Estado formou esse personagem que está dentro do ônibus?” O Tropa de Elite é exatamente a mesma coisa, mas pelo outro lado. Como é que o Estado constituiu esse personagem, o capitão Nascimento, um polícial tão violento? E o filme faz isso com muita clareza, se você olhar pro filme, pra sua estrutura narrativa, você vê que o filme começa com o Nascimento em crise, descobrindo que a ideologia de controlar a violência é incompatível com a sua própria família, querendo sair da Tropa de Elite. Qual que é o drama do filme? Para ele sair, ele tem que produzir uma pessoa exatamente igual a ele. Claramente, o filme fala como esse personagem se cria na nossa sociedade. Portanto, é uma crítica do consenso social que cria esse tipo de polícial.

O Urso de Ouro em Berlim mudou o o rumo da sua carreira?

Sim. Quando você ganha um festival como o de Berlim, isso divulga o seu trabalho. Não significa que o seu filme é melhor do que os outros filmes, significa apenas que o júri do festival escolheu o seu filme para, de uma maneira simbólica, dizer: “olha, prestem atenção nesse filme”. Isso muda a carreira internacional do filme que ganha, das pessoas que trabalharam nele.

Você discorda da maneira como o governo do Rio de Janeiro lida com a violência?

O governo atual tem uma política de enfrentamento na favela. É uma política baseada no BOPE. Quantas pessoas a polícia matou no RJ no ano passado? Mil e duzentas pessoas. Só para você entender o tamanho desse número, nos EUA, que é um país de 300 milhões de habitantes, a polícia matou ano passado 200 pessoas.

Como é fazer um filme numa favela? Quais as dificuldades que vocês encontraram em filmar no morro?

É muito difícil fazer um filme na favela porque você tem que ter a plena certeza de que o traficante que controla uma favela está de acordo com a filmagem. E depois você tem que ter certeza de que a polícia não vai invadir aquela favela enquanto você está filmando – se ela fizer isso, e acontecer um tiroteio, você pode correr riscos. A gente talvez não tenha sido muito eficiente em nenhuma dessas duas coisas porque uma vez a polícia tentou invadir a favela, houve tiroteio e quase que uma pessoa da equipe foi baleada. E também tivemos traficantes que seqüestraram um carro com as armas cenográficas, com as balas de festim e com quatro pessoas da equipe dentro. Isso fez com que a polícia entrasse na favela, que era a nossa locação. O filme foi parado e tudo o mais. Isso aconteceu provavelmente porque não fizemos nenhum acordo com os traficantes. Fomos nas associações de moradores e nas ONGs que as favelas têm, fizemos acordo com elas e contratamos várias pessoas da comunidade para filmar e trabalhar com a gente, empregamos várias pessoas e fizemos doações para as comunidades. Só que a gente sabia, evidentemente, que as comunidades estavam se comunicando com os traficantes.

E de que você sentiu mais medo no final das contas: da polícia ou dos traficantes?

Eu senti mais medo dos traficantes porque eles usam drogas e você nunca sabe o que vai acontecer. Quanto à polícia, eu achava muito difícil ela nos fazer algum mal durante a filmagem porque a repercussão na imprensa seria muito grande. Na verdade, o que a polícia tentou fazer foi não dar autorização para as filmagens. Mas o que acabou acontecendo foi que a polícia começou a revisar
o roteiro e aí a gente respondeu que não cabe à polícia avaliar roteiro. Eles dão autorização de filmagem ou não baseando-se em outros fatos, não no roteiro do filme. Aí criou-se um impasse que durou três meses até que a gente foi ao governador do Estado do Rio e falamos sobre a censura, explicamos que no Brasil existe a liberdade de expressão. O governador fez um cálculo político consigo mesmo: “é melhor ser chamado de censurador e ter toda a imprensa contra mim ou deixar eles filmarem e depois a gente se vira com isso?”. E ele optou pela segunda opção. Graças a Deus.

Fonte: Jungle Drums

Nenhum comentário:

Postar um comentário