domingo, 7 de junho de 2009

Resenha: ônibus 174

Se há um clichê para definir o filme Ônibus 174, de José Padilha, é “um tapa na cara”. Poderia falar-se, também, em “soco no estômago” ou qualquer outra frase desse nível. Mas o que impressiona mesmo no vídeodocumentário não são esses lugares-comuns que ele traz; são os “lugares-comuns” cotidianos que ele explicita de forma impressionante; são aquelas verdades brasileiras escondidas por debaixo do pano das quais se costuma dizer que “não acontece comigo”.


O que o diretor José Padilha mostra no relato do famoso caso do ônibus da linha 174 – que foi sequestrado em 12 de Julho de 2000 no Rio de Janeiro, no bairro do Jardim Botânico – é justamente que há uma indiferença por parte do povo brasileiro quanto ao que acontece na sociedade – e, obviamente, quais as consequências disso. O cineasta leva a falta de consideração do brasileiro das classes médias e altas, sua completa alienação, à última instância, que é o seqüestro do ônibus per se.


A história se passou em 2000, quando o Brasil inteiro assistiu pela televisão ao sequestro de um ônibus no Rio. Todo o processo levou uma tarde inteira para culminar no assassinato do sequestrador e de uma das reféns. E o que poderia, se fosse para ser filmado, transformar-se em um Tropa de Elite mais comercial, acabou virando documentário nas mãos de Padilha, que procurou mostrar o lado do sequestrador, Sandro Barbosa do Nascimento, e tentou fazer o público enxergar para aonde caminha a sociedade no Brasil.


Uma das partes mais marcantes do filme é quando resolve-se falar de outro episódio vergonhoso da história do Rio de Janeiro, A Chacina da Candelária, na qual 8 jovens moradores de rua foram cruelmente assassinados por policiais militares. O narrador, no momento em que está falando sobre o ocorrido, conta que, à época, para a sociedade como um todo, a atrocidade havia sido bem executada, e a maioria das pessoas concordavam com aquilo. A população sempre quis simplesmente exterminar essa “escória” da sociedade.


Com Sandro as opiniões não foram muito diferentes. São incríveis as imagens feitas depois que o sequestrador já havia sido baleado, nas quais centenas de civis correm para o local e começam a dar pontapés e chutes no marginal. As pessoas esquecem, porém, que anos atrás concordaram com um ato de barbárie equiparável ao que passaram a tarde a assistir – ironicamente, veio a descobrir-se que Sandro era um dos sobreviventes da Chacina.


José Padilha coloca, portanto, em discussão quem pode ser realmente taxado de vilão e de “mocinho” na história do ônibus 174. O diretor, porém, não se preocupa em exprimir abertamente sua opinião, mas, antes, prefere fazer germinar o debate social por trás da história de um menino pobre que viu sua mãe ser assassinada, teve que se mudar para as ruas do Rio, sobreviveu a uma chacina cometida por policiais e acabou seqüestrando um ônibus sem, porém, matar ninguém – não se sabe oficialmente quem matou a única refém vitimada, mas é sabido que o primeiro tiro, na cabeça, foi dado por um policial.


As diversas fontes ouvidas pela equipe do filme denotam sua provável imparcialidade no assunto: algumas das reféns passam o filme inteiro contando o fato, mas a mãe de criação de Sandro, sua tia e uma assistente social que cuidou dele intercalam seus depoimentos com os de alguns policiais e até mesmo de um colega marginal do sequestrador.

O fio condutor do documentário, a história de fundo, que é a do sequestro, é mantido pelos depoimentos de quem viveu a situação. Mas o filme preocupa-se em, a toda hora, mostrar o que tudo aquilo quer dizer em um país no qual grande parte da população não tem direito a recursos humanos básicos, em que o sistema carcerário funciona aquém daquilo esperado para se garantir o mínimo de direitos humanos, e aonde uma elite preconceituosa acha melhor exterminar bandido e morador de rua ao invés de pensar em formas de acabar com essa situação precária.


Sem focar sempre no que acontece no ônibus, o filme vai contando pequenas histórias de ex-colegas de rua de Sandro, denuncia situações esdrúxulas em prisões e casas de reeducação social brasileiras, mostra como a opinião pública é completamente alienada e bárbara, e tenta convencer o espectador de que “as coisas não são bem assim”.


É certamente um filme que revolta e causa desconforto. E esses sentimentos são causados justamente porque o público sabe que tudo aquilo que está sendo falado ali na tela é verdade; que todos os debates ali propostos são sérios; que ninguém realmente nunca faz nada. As pessoas sabem que “ninguém faz nada pelos Sandros” do Brasil. O público que assiste a Ônibus 174 tem consciência da realidade que não quer aceitar – por isso sai tão abalado do filme.


O que realmente acaba sendo irônico é que José Padilha, que tentou sacudir o brasileiro e abrir-lhe os olhos, não fez mais que causar um sentimento instantâneo nele; um falso moralismo momentâneo que perdura, no máximo, até a conversa no bar pós sessão de filme para a maioria. Muitos saem revoltados, querem mudar alguma coisa naquele momento, mas aí vão dormir, acordam no outro dia e fecham as portas para os milhares de Sandros que Padilha tentou mostrar. No fim, é difícil encontrar alguém que de fato esteja disposto a tentar mudar a situação. E aí o Brasil continua, até o ponto em que, possivelmente, estoure novamente a realidade e outro ônibus 174 aconteça.

Nenhum comentário:

Postar um comentário